Delícia de experimentador

Como é que vou dizer o que eu sinto? Sou um emaranhado de sentimentos e emoções à flor-da-pele ebulindo a qualquer palavra olhar evento acontecimento. eu sinto sinto sinto sinto, quem me dera não sentir mais nada nada, viver é dor, everybody hurts, sometimes, mas parece que eu dôo o tempo todo, muitas vezes sentir é bom, mas outras era melhor parar por aqui. Daqui por diante nada, branco, nulo, decretado o gelo, a era do gelo, da indiferença. Ah, indiferença, a indiferença dói, fere na alma, fere fundo, fere agudo, fere com ponta, com várias pontas. Eu preciso que você me desaponte muito muito muito muito, por favor faça algo muito ruim imperdoável prá eu poder me livrar de você, da idéia de você, da ilusão de você, pise na bola, vai, você consegue, eu sei que sim, mais cedo mais tarde você vai pisar, você já está quase lá, pise só um pouquinho, não precisa muito, me desiluda, me decepcione, me decepcione, na verdade não é você, sou eu, eu eu eu eu eu eu, eu é mais forte que eu, deve ser químico, isso, só pode ser, talvez uma droga resolvesse, qualquer química, qualquer, mas eu sou careta, eu sou sóbria, eu sou raçuda, pingo sal em ferida, escovo queimadura. Mas eu te rogo essa praga: sinta!

Ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor
só doer
não é dor
delícia
de experimentador
Leminski

Que tudo passe

Tempo de chuva, tempo de perda – amizades que se foram pelo ralo da indiferença, levando junto sonhos, lembranças e certezas. E cada um segue seu caminho, e eu sigo o meu mais dura, mais sozinha, mas também mais independente, mais forte, mais eu mesma. Nesse mundo somos eu e eu mesma. E tudo passa e tudo passará. Que passe logo e passe muito bem!

Que tudo passe
passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
passe a paz

passe o que nasce
passe o que vem
passe o que faz
passe o que faz-se
que tudo passe
e passe muito bem.

Paulo Leminski

É pau, é pedra, tira o pé do caminho

Minha mãe tem uma coleção completa de LP’s de MPB da Editora Abril. É um baita coleção com umas seis caixas, cada uma com uns vinte discos. Esta coleção marcou minha infância e adolescência. Todo sábado minha mãe fazia faxina na casa, abria bem as janelas, botava tudo prá cima e colocava estes discos na vitrola (a vitrola era embutida numa estante muito bacana que infelizmente se perdeu no tempo). Algumas das músicas que me lembro da minha mãe colocar era Xodó de Dominguinhos, na gravação do Gilberto Gil.

Eu adorava, adorava a sanfona e quando ninguém estava me olhando eu pegava uma sanfoninha de brinquedo e fingia que estava tocando. Gostava muito também porque era a música que sempre tocava na fonte luminosa da praça de Caraguatatuba.
Irmãzinhas

Além desta e muitas outras, a minha música preferida de todos os tempos, que minha mãe também tocava bastante era Águas de Março, de Tom Jobim. As primeiras notas do piano, que lembram gotinhas de chuva pingando, até hoje me enchem de uma sensação de extrema felicidade que culmina no final, com aquele jogo de palavras em que a gente percebe nitidamente que a Elis começa a rir, que coisa boa! Lembro especialmente de um dia em que minha mãe, brincando com a gente que estava por ali atrapalhando a limpeza, passou a vassoura nos nossos pés e cantou: “é pau, é pedra, tira o pé do caminho”. Achei a maior graça.

Fui feliz! 🙂