A Entrada dos Palmitos

Mais uma Festa do Divino de Mogi das Cruzes se aproxima. Essa festa faz parte da minha vida desde criança. Fiquei pensando aqui comigo que seria um bom mote para desenvolver uma crônica, ou um conto, ou até mesmo uma história de ficção para crianças, o meu sonhado livrinho ilustrado. Segue então, meu primeiro esboço, em forma de crônica, falando especialmente sobre a Entrada dos Palmitos.

Entrada dos Palmitos

– Filha, vai ver se eles já estão vindo!

– Não vó, tão lá em cima ainda.

– Ih, estão atrasados. Ano passado, a essa hora já estavam aqui em frente. Mas então pega essa toalhinha vermelha e coloca no murinho. Depois atravessa a rua e pede prá D. Dina se ela tem umas flores vermelhas prá pôr no vasinho.

– Tá bom, vó.

Era assim. Sábado de manhã, véspera de Pentecostes, na casa da minha avó. Um corre-corre e um vai-e-vem da varanda prá dentro da casa, enfeitando a frente prá passagem do cortejo da Entrada dos Palmitos. A Tia Mi montando um altarzinho, ia orquestrando a sobrinhada, que corria pegar ora uma tesoura, ora uma cola, um pedaço de fita crepe, fitas coloridas nas cores dos sete dons. Tudo muito vermelho com dourado e prata, as cores do Divino. Minha avó, velhinha, toda bondade e doçura acompanhando os preparativos com o olhar aprovador.

– Agora pega a imagem do Divino com cuidado.

– Isso! Pronto! Que lindo que ficou!

Os meus tios e tias vinham acompanhar a Entrada da casa de minha avó.

– Estou com a casa cheia – Dizia ela. Também pudera, onze filhos, mais genros, noras e vinte e nove netos. Sem falar nos “agregados”, primos de todo lado. Nem todos compareciam, mas só uma parte desse povo todo já era suficiente para encher a casa.

– Mãe, a quermesse ontem estava fervendo. – conta uma das minhas tias, que chegava esbaforida da rua.

– Acabei de passar no Império, está lindo. A sua bandeira está lá, Mi, cheia de nozinhos nas fitas.

– Você foi na alvorada? – pergunta outra tia.

– Não, mas ontem fui na passeata. Fomos na casa daquela senhora doente, coitada. Rezamos prá saúde dela. As filhas serviram cada bolo gostoso! E a Folia do Divino, tocou que foi uma beleza.

– Ah, os violeiros.

Som de fogos pipocando ao longe. Já se ouvem os sons das patas de cavalo batendo no paralelepípedo, o estalar de chicotes e o barulho de carroças e charretes. É o povo que vem das redondezas, da zona rural da região, para participar da Entrada.

O sol, como sempre, presente, num céu azulão de maio, com poucas nuvens, irradiando um calorzinho bom nesse começo de inverno. Ele não falha, nunca vi Entrada dos Palmitos sem sol, pode chover na procissão, mas na Entrada, não. Parece que ele sabe e também quer participar da festa.

O burburinho já se sente pela cidade, acompanhado do cheiro de curral que se espalha pelas ruas onde os cavaleiros passaram. O trânsito interrompido nas ruas principais provoca um pequeno congestionamento, contrastando com o clima de cidade do interior que se instala no ar. As ruas já estão enfeitadas com mudas de palmitos. Pinceladas de vermelho já se nota, aqui e ali, nas vestimentas, como o lenço no pescoço daquele senhor que vai correndo, segurando seu chapéu de feltro, decerto atrasado pro desfile.

O cortejo sempre se concentra em frente à capela de Santa Cruz de onde sai, descendo a rua Dr. Ricardo Vilela, a rua da casa de minha avó. O som surdo das batucadas dos grupos folclóricos vem num crescendo, criando uma expectativa no ar. Meu coraçãozinho ia acelerando de excitação, num misto de medo e fascinação, batendo no mesmo compasso dos batuques. Duncudugudum, duncudugudum, duncudugudum. O barulho agudo e monótono das rodas dos carros de bois se aproximava, nhéééééééé.

– Vó, vem prá cá, eles estão chegando! – A gente gritava prá dentro da casa. Ela vinha sempre enxugando as mãos no avental, sinal de que estava na cozinha preparando alguma coisa gostosa prá gente.

– Menina, desce desse muro. Se você cai, quero ver só. – Minha tia sempre ralhando comigo.

– Mas a Cíntia subiu, eu também quero ver.

– Sua irmã é maior que você, me obedece e desce já daí. Eu vou chamar sua mãe.

– Vó, deixa eu ficar aqui também?

Ela sorria e ficava atrás de mim, me protegendo.

– Na hora em que os cavalos e os bois passam você fica com medo e foge, bobona. – Minha irmã me provocando. A netaiada disputava os melhores lugares na mureta prá poder ver melhor o desfile. Os mais velhos se espalhavam pela varanda.

Um cavaleiro para em nossa frente e toca o berrante, todo contente por ter uma oportunidade de se exibir. O povo aplaude. Minha avó manda um beijo, meu avô faz troça com ela: “O Gerarda, o moço deve tá achando: ô véia assanhada!” A gente ria, que felicidade, que festa. As crianças sempre tapando os ouvidos com as mãozinhas a cada estouro de mais um fogo de artifício. E lá vinham os bois, os carros de bois, e carroças, e charretes, todos enfeitados com palminhas e flores vermelhas.

– Pega um copo e enche a jarra com água prá distribuir pros moços que estão tocando os bois. – Minha avó, sempre preocupada com os outros.

Som de sanfonas e batuques, são os grupos folclóricos, com sua animação e colorido. Marujada de Nossa Senhora do Rosário, azul, Congada de São Benedito, branco, detalhes azul e vermelho, Congada de Santa Efigênia, verde, Moçambique São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, amarelo e vermelho. Fico com inveja do molequinho com seu chapéu de marujo, com fitas coloridas dançando a congada

– Amanhã você sai de anjinho, e no fim você ganha o cartucho. – Me lembra minha avó. Domingo é o dia da procissão. As crianças que saíam de anjinho ganhavam um cartucho, um cone de papelão enfeitado com franja de papel vermelho e com doces dentro.

Meus tios passam na correria ajudando na organização. Mas páram prá tomar a benção dos pais.

-A bença, pai, a bença mãe.

– Deus te abençoe, meu filho.

-Tão gostando?

-Tá bonito, meu filho. Muito bonito.

-Mas aquela cavalhada de Guararema não vem mais. Meeerrrrrrrda!

-Não faz mal, meu filho, tá bom assim.

Em seguida vinha a Banda Santa Cecília, na frente dos guardinhas do exército. Depois o menino vestido de Imperador do Divino à frente dos festeiros, capitães-do-mastro e as autoridades. E como sempre, atrás, o povão, a massa.

– Assim como os treis reis magros…- As rezadeiras e os fiéis com suas bandeiras passam cantando a Bandeira do Divino. Minha avó se emociona e já começa a chorar.

-Já tá chorando, mamãe? -pergunta uma das tias.

Ela assenava que sim com a cabeça limpando o nariz com um lenço, e virava as mãos, como a dizer: “o que que eu posso fazer?” Me emociono também e tento disfarçar.

– Bom deixa eu ir, que ainda vou ajudar a servir o afogadão. O povão já tá fazendo fila. Também, de graça! – E lá se ia outra tia.

– Vai, filha, vai com Deus e o Divino.

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Hoje meus avós já morreram e isso tudo ficou prá trás. A casa foi vendida e é uma escolinha infantil. A Festa cresceu muito e já não é mais o que era antes. O podres poderes sempre estragam tudo o que tocam. E eu nem acredito mais em Deus ou no Divino. Quando é dia de Entrada dos Palmitos a gente, da família sempre comparece, mas fica meio perdida, espalhada ao longo do cortejo, sem uma referência. E quando eu ouço o som das batucadas dos grupos folclóricos, ou vejo o povo simples, sofredor, mas cheio de fé, rezando, cantando, não consigo evitar. Dá um aperto no coração, os olhos ficam marejados. O que que eu posso fazer, vó?

9 comentários em “A Entrada dos Palmitos

  1. Achei sensível e emocionante tua narrativa. É coisa que dá gosto de ler, de lembrar as tradições populares, as vivências de nossa infância, com nossas famílias. Ainda não tive a oportunidade de ver a entrada dos palmitos, mas já ouvi e vi pela tv; e conheci os grupos de moçambique, congada, em outras oportunidades. Obrigado por estas linhas.

  2. Parabéns pela iniciativa, achei tão gracioso seu blog falando da festa do divino, pois eu passei a achar que a festa era mais uma exposição de (pessoas do clubinho social de Mogi que apenas por vaidade de exibir participam da festa, e também os políticos…) mas o seu comentário de participar desde criança eu fiquei entusiasmada, pois é essa memória que gostaria de gravar na mente de meu filho, que é uma festa da cidade em que ele nasceu, e que eu esqueça o resto, assisti o ano passado a entrada dos palmitos e achei que as pessoas estavam meio triste, sem entusiasmo, mas meu filho adorou, acho que peguei de um ponto que já era quase o fim do percusso, vou tentar pegar o ínicio pra ver se me deixo contagiar.

  3. Pesquisando sobre a festa do divino de Mogi, pois esse ano, como guia de turismo, levarei um grupo para a festa, vi as belas fotos do seu post…. mas além das fotos o que é mais rico e bonito, é sua descrição dessa festa religiosa e popular…… Como ja disseram, me emocionei também, por tem em mim muita alegria por manifestações populares……ao ler fiquei imaginando a alegria de todos os envolvidos….. Parabéns………..

  4. Oi Catia!
    Cheguei ao seu site pelo Google, perguntando pela festa do Divino de Mogi, pois, sou professora e trabalharei a entreda dos Palmitos.
    Abçs

  5. Adorei seu depoimento. Chorei confesso. Sou mogiana, assisti muitas entradas dos Palmitos, mas, o trabalho me afastou desse capricho há algum tempo. Mas, me emocionei com sua história, me emociono com o pouco que consigo acompanhar da tradição e da religião, a fé me aquece bastante, penso que é impossível vc com tanat riqueza nos detalhes tenha perdido a fé, talvez o encanto de algo que foi muito maravilhoso e que não volta é que seja frustante, pois, quanto mais podemos vivenciar mais gostoso é. E, realmente antigamente partipavamos mais, de forma mais simples e presente.
    Que Deus lhe abençoe! Adorei.

    1. Oi Rose,

      Obrigada pelos elogios. Por curiosidade, como você chegou em meu site?
      Abs

  6. porque não colocaram a foto do batalhão nossa senhora aparecida

  7. Olá, muito interessante essa história.
    Eu também sou Mogiano (embora agora esteja no Japão, mas pretendo voltar em breve ao Brasil), nunca tive a oportunidade de ver essa festa de perto, mas depois de ler este post com certeza farei o possível para conferir. Deu uma saudade!

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