Recordações de outros Natais

O Natal prá gente era o ápice da nossa vidinha infantil. Mas prá gente ele começava antes, já no final de outubro. Minha avó organizava uma encenação do presépio, com a netaiada e criançadas dos “agregados” da família. Os ensaios começavam bem antes, na catedral de Sant’Anna. Os netos mais velhos representavam os personagens mais importantes: José, Maria, os arcanjos Gabriel, do sonho de José e dos pastores de Belém, a Estrela-Guia, Isabel, a prima de Maria e mãe do João Batista, os três reis magos. Os menores eram relegados aos papéis menos importantes: pastores, anjinhos, bichinhos (sim, a vaca, o boizinho e o burrinho eram representados por crianças com máscaras). Com o tempo, minha vó foi ficando velhinha e a tarefa foi assumida pela minha mãe que acrescentou algumas cenas, como a do soldado romano lendo o edital sobre o rescenceamento, a do casal José e Maria procurando uma estalagem em Belém, e a do tirano Herodes consultando os doutores da lei e ordenando a matança dos inocentes.

Tudo era encenado com vestimentas preparadas pela minha avó ou costureiras. Minha mãe tentava fazer os figurinos mais realistas, no começo os pastores se vestiam com roupas de pastor europeu, meio tirolês, mas minha mãe fez trocar para um pastor mais judeu, de túnica com pano na cabeça amarrado com cordinha. Os homens da lei usavam até uma touquinha, o Herodes, tinha uma coroa de louros e o centurião, um capacete com aquele moicano vermelho. Até um aparato daqueles de incenso para um dos reis Magos carregar tinha. Meu avô também entrava na dança, ele fez a manjedoura, que servia de berço para menino Jesus, fez a estrela guia que uma menina carregava, as coroas dos reis, os baús com os presentes e as asas dos anjos. Ele também inventou uma lanterninha que imitava uma vela com uma pequena lâmpada. Na cena em que o anjo aparece para os pastores, apagavam as luzes e os anjinhos entravam correndo com suas lanterninhas acesas prá cantar o Hosana nas alturas. Além disso, ele era responsável pelo transporte da criançada na sua famigerada Kombi verde abacate. Meu avô sempre teve fama de brabo, de dar tremendas surras nos seus filhos, mas prá mim, meu avô era muito querido e nunca falou duro comigo. Essa participação dele no presépio mostrava também sua disposição para agradar os netos. Outro primo fez as máscaras dos bichinhos e um rebanho de carneiros de madeirite com algodão. As asinhas eram feitas com penas de galinha que minha avó pegava na granja, lavava em água fervente e depois tingia algumas de rosa e outras de azul, algumas ficavam branquinhas mesmo. A casa virava uma verdadeira produção, na mesa da copa o meu avô ficava lá, colando as penas, enquanto minha avó ficava bordando os vestidinhos.

Os ensaios eram uma diversão, geralmente aconteciam à noite. A gente ficava correndo pelos corredores da grande catedral vazia e olhando os vitrais coloridos com imagens de santos e embaixo as dedicatórias, cada um foi patrocinado por uma família graúda de Mogi. Ao lado da entrada havia uma sala onde ficavam as imagens das procissões, a gente ficava fascinada e aterrorizada com a imagem do Senhor morto num esquife. Ficava pensando se Ele estava mesmo mortinho ali. Tinha também a Nossa Senhora das Dores, com um punhal no peito, e a do Cristo Ressurrecto. Depois corríamos pelo corredor lateral largo que ia dar na capela do Santíssimo. Nesta capela há uma pintura muito linda na parede dos Discípulos de Emaus. A gente ficava lá olhando. Minha avó ficava explicando e contando algumas histórias prá gente, da Bíblia e dos Santos. Na saída geralmente comprávamos uma pipoquinha e às vezes íamos caminhando até a casa da avó, lembro especialmente do cheiro de dama-da-noite, que batia da casa dos vizinhos da frente, Seu Mauro e Dona Dina. As noites eram mornas e a gente passeava. Pelo caminho íamos brincando de se equilibrar na guia da calçada ou de só pisar nas partes brancas.

Como a gente era feliz, meu deus! Além da encenação do presépio tinha também a grande ceia na casa da minha avó, no dia 24. Minha tia sempre chamava a gente prá ajudar a enfeitar a casa e montar o presépio. Depois que o presépio ficava pronto, minha avó fazia a gente rezar em volta. Meu avô tinha feito uma cabaninha de telhado de palha, pedaços de espelho representavam os lagos. A gente adorava ficar lá olhando. Alguns anos, inventaram uma árvore com chocolates pendurados, lembro que uns primos velhos e sem graça avançaram e me deixaram sem nenhum. Eu era “café-com-leite” durante uma época, porque era a mais nova de uns vinte netos. Isso significava que eu entrava nas brincadeiras só prá participar, mas não era “prá valer”. Minha avó me disse: “Não liga, boba, depois a vovó te dá uns docinhos”.

Na noite da ceia, meus avô e tios aumentavam a grande mesa da sala de jantar para comportar todo mundo, e alguns ainda ficavam de pé. Era uma fartura, uma comilança, e só coisa gostosa. A família toda reunida, algumas vezes rolaram alguns arranca rabos memoráveis, mas na minha inocência de criança, não fazia idéia do que acontecia no mundo dos adultos. Mas antes de avançar na comida, minha avó fazia a gente rezar, lia o evangelho, rezava terço e lia uma mensagem escrita por ela especialmente para a ocasião. Geralmente nessa hora o telefone tocava, algum dos filhos, netos ou parentes de fora ligando para tomar a benção dos velhos. Depois um tio fantasiado de Papai Noel vinha distribuir os presentes. Eu morria de medo do Papai Noel, minha mãe diz que meu coraçãozinho disparava na hora de pegar meu presente. No dia seguinte, ainda havia o almoço de Natal. Algumas sobras do dia anterior, mas também pratos especialmente para o dia. Minha sobremesa favorita era o pudim de leite da minha avó, o pudim mais gostoso. Minhas tias se esmeravam na sobremesa, mas eu gostava mesmo era do pudim.

É, é difícil acreditar como tudo muda, como o que era tão certo hoje não passa de lembrança. Natal hoje é só uma correria tremenda, e eu trabalhando, quase nem percebo e de repente já passou dia 24. Saudades…

5 comentários em “Recordações de outros Natais

  1. AS LÁGRIMAS ROLAM SEM PARAR………………..LEMBRO DE CADA SEGUNDO DAQUELES ENSAIOIS, DAS BRINCADEIRAS, DA DONA LENIR DANDO BRONCA NA MOLECADA PRA PODER ENSAIAR DIREITO KKKKKKK, QUE COISA BOA MINHA PRIMA É ISSO MESMO QUE TEMOS DE GUARDAR EM NOSSAS LEMBRANÇAS. UM GRANDE BEIJO E CONTINUE POSTANDO ESSAS MEMÓRIAS MARAVILHOSAS.

  2. Oi Cátia, amei seu post, minha mente voltou lá para os anos 1970 e 1980, eu fui uma das únicas que participou até depois de adulta, arrumando os cenários e ajudando sua mãe nos ensaios. Ainda lembro que o papel de Izabel foi criado por minha causa. Naquele ano eu seria a Maria, estava tudo acertado, mas uma prima sua, acho que foi a Marize acabou ficando com o papel e eu fiquei super chateada, então incluíram a cena da Izabel, lembro também que fui a primeira a usar sandálias, todos os personagens ficavam descalços e eu fiquei doente nesse mesmo ano da Izabel, no dia da apresentação eu estava com um febrão, então minha mãe arrumou umas sandálias bem discretas para eu não precisar pisar no chão frio da Catedral. A partir daí todos começaram a usar sandálias.
    Lembro também, como se fosse hoje das mensagens da Tia Geralda, mesmo crianças nós sabíamos o quão emocionantes elas eram.
    Sinto muitas saudades daquela época.
    Deus te abençoe

    1. Adriana e André,
      Obrigada pelos comentários. 😀 Foi uma época muito boa mesmo. Ficou faltando eu mencionar seus pais que ajudavam minha mãe a organizar tudo, com muita paciência. Virgínia e João, muito queridos!

  3. Catia, quantas saudades! Ainda tenho uma fita de videocassete com a reportagem que a TV Cultura fez. Choro toda vez que assisto e vejo a Tia Geralda falando com paixão…
    Um Feliz Natal, prima querida!!!
    Que Deus te abençoe, sempre!

  4. Parabéns! Seu texto é simplesmente singelo e maravilhoso. Não tive um Natal assim, mas li cada palavra sua como se fosse criança… E não podia ter sido melhor, hein? Desta vez, acho que consegue agradecer a Deus por isto… rsrsr

    Abraços.

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