Bicho esquisito

Um lugar sem ninguém me olhando, vamos, depressa! Deve ter algum canto nesse parque maldito! Vão trabalhar, o que vocês estão aqui, correndo? malhando? não adianta, vão tudo morrer mesmo, me deixem em paz, me dêem um pouco de privacidade, caramba. Logo, logo, depressa, não vou aguentar, não vou aguentar mais, não dá. O gosto salgado de lágrimas na boca, o olho embaçando, os olhos míopes embaçados e lágrimas, não dá prá ver mais nada, só o vulto das pessoas correndo. Um sabiá cantou, que lindo, meu bem, mas agora não dá, não dá. Só preciso um cantinho prá mim, é pedir muito? Cidade dos infernos. Tropeçou numa?  pedra? Não sei, mas com o tropeço foi parando e sentando na ponta de um banco, aqui, pronto, aqui posso chorar à vontade. Quando finalmente começa a chorar e soltar aquele bolo preso no peito, na garganta, ouve a voz do personal trainer: “Isso, mas encaixa mais o quadril e vai baixando o tronco devagar”. Mas será possível? Cidade dos infernos. Abaixa a cabeça entre as pernas e a envolve com os braços, tentando disfarçar, e chora mesmo assim, dane-se se estão olhando. Chora baixinho, só soluça, só sente o corpo convulsionando, sem emitir som, sem chamar muito a atenção. Isso, deixa sair, aliviar o peito. Chora sem pensar muito, sem pensar no porquê, se não vai doer mais ainda. Quanto tempo ficou assim, não sabe. As palavras ditas durante a discussão se misturaram à voz do personal trainer, dando as instruções calmamente para seu aluno. Começou a prestar atenção aos dois, sem olhar para eles, olhando para baixo, vendo as próprias lágrimas caindo no chão, na terra, fazendo um barro. Ouvindo o barulho das lágrimas batendo na terra com um pequeno som abafado, inaudível, uma lágrima caiu bem em cima de uma formiga. Mas porque mesmo estava chorando? Porque discutiram? O que machucou tanto assim? O que foi dito? Não sei, mais, ai que vergonha. De repente se viu gritando e dizendo coisas meio desconexas, com raiva. Um dos colegas a encarou assustado de sua mesa, o que está acontecendo? E mesmo gritando, em sua mente, ela mesma respondeu:  “não sei!”, como se não fosse ela mesma quem estivesse ali naquele momento gritando e brigando. Quando a discussão terminou, e cada um voltou para seu lugar, ela ainda bufava, bufava como um boi, e tremia de nervoso. Vou explodir, é melhor eu sair daqui, rápido. Pegou as chaves, dinheiro e desceu as escadas pisando duro, rapidamente e caminhou em direção ao parque, onde achava que teria privacidade para respirar até passar aquela coisa.

Ela sabia muito bem porque chorava, porque brigara, porque discutira como um animal ferido. Um animal ferido, era isso. Ela era um animalzinho ferido, pequeno e acuado, rodeado por pessoas tentando curá-lo, mas, que no meio da dor e do medo e do susto, não deixava que chegassem perto, e grunhia com as forças que restavam. Mas o órgão ferido era o coração, ferido no fundo, com a força de um espinho na pata, um espinho que, quanto mais se anda, mais vai se encravando, e inflamando, e supurando até que não é mais possível andar, se mover.

Era assim que se sentia. E a humilhação da situação? E a humilhação? Que humilhação, que humilhação. E agora ainda lembra que vai ficar menstruada, por isso o chilique. Também. Também. Se ela pudesse ao menos controlar estes ataques, sim ataques, porque vinham de dentro da alma, inadvertidos, repentinos, inevitáveis, imprevisíveis. Como o lobisomem, uma vez por mês, na lua cheia se transforma, uma vez por mês ela virava um monstro mau, muito mau. “Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”. E o pior é que depois dos ataques, ela quase não se lembrava de nada direito do que aconteceu. Não conseguia reproduzir a cena em sua mente, não conseguia lembrar direito o que foi dito.

E dessa vez aconteceu justo com Ele, justo contra Ele, na frente dEle. Ele te viu assim, no auge do seu pior, do seu pior, do seu mais baixo, mais horrível. Ele já sabia, mas agora estava confirmado: você é ruim, você é um monstro descontrolado, por isso você está sozinha, por isso, só por isso, menina má. Uma vez você esbofeteou um coleguinha no prezinho. Você lembra que no mesmo instante se arrependeu, mas por dentro sentiu um certo prazer. A netinha querida, que rezava com as mãozinhas cruzadas no peito deu um tapa doído na cara do menino que a ofendeu. Bem-feito, mas e agora? O que vão pensar? O que Ele vai pensar?

Melhor levantar daqui e voltar. Já faz quanto tempo? Uma hora será? Talvez, ou até mais. Foi até o banheiro, lavou o rosto e mirou-se no espelho. Os olhos injetados e inchados não deixavam dúvidas que tinha chorado. Ficou ali se encarando, aquele rosto deformado pelas lágrimas e de repente, não era mais uma pessoa, uma mulher, era só um bicho esquisito.

Um comentário em “Bicho esquisito

  1. Insira seu comentário aqui.
    Você sempre me surpeende! Gostei muito. Me lembrou Clarice Lispector e seu mundo interior. Parabéns. Quero mais.
    Bjs

Deixe uma resposta