De que lado você está?

Eu deixei de acreditar em Deus faz tempo. Fui criada numa família muito católica, até meus quinze anos ia à missa todos os domingos. Confesso que parei de ir à missa porque achava chato. Não foi aí que deixei de acreditar em Deus. E nem é essa história que quero contar aqui. O que quero é tentar explicar as coisas que acredito e porque acredito nelas.

Na paróquia que frequentava passaram dois padres que muito admirei. Um deles foi o padre Hilário, não lembro o sobrenome. O padre Hilário era um padre muito culto, morou na Terra Santa e seus sermões eram muito interessantes de se ouvir, pois eram sempre acompanhados de uma explicação histórica e cultural sobre a Bíblia. A interpretação da Bíblia feita por ele evitava levar as palavras ao pé da letra, e sempre eram contextualizadas. O outro foi o padre italiano Luís Ceppi. Foi ele quem mais admirei. Ele foi padre na paróquia de São José Operário de Mogi das Cruzes quando eu era criança, devia ter entre nove e oito anos. Cabeludo e barbudo, esse padre era “diferente”. Pela aparência logo se via que era da ala mais à esquerda da Igreja. Me lembro de seu forte sotaque italiano e de uma música que ele gostava muito de cantar, talvez tenha sido tema de uma campanha da fraternidade da época. Os versos diziam: “Seu nome é Jesus Cristo ele está preso, Seu nome é Jesus Cristo ele está enfermo, Seu nome é Jesus Cristo ele é imigrante”, po aí vai. E o refrão dizia: “Entre nós está e não O conhecemos, entre nós está e nós O desprezamos.” É uma livre citação da seguinte passagem da Bíblia, do evangelho de São Mateus:

42 porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; 43 era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes. 44 Então também estes perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou forasteiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? 45 Ao que lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixaste de fazer a um destes mais pequeninos, deixastes de o fazer a mim.

Me lembro de um sermão que ele fez em que ele explicou a letra dessa música e esse evangelho. Jesus está em todos nós, mas está principalmente nos excluídos e cada vez que a gente ignora esses excluídos estamos virando as costas para Jesus. Ele me causou uma forte impressão, tanto que até hoje me lembro e eu tinha só oito ou nove anos.

Mas a influência mais forte na minha formação católica veio de minha avó Geralda. Algum dia talvez eu consiga fazer justiça a sua pessoa, mas agora só vou pincelar uma parte do seu retrato. Minha avó é prá mim o exemplo maior de bondade, generosidade. Ela era uma figura carismática e muito amada por todos. Teve onze filhos, era uma católica fervorosa. Escrevia mensagens todos os anos para a família, que eram lidas nas ceias de Natal. Mas ela não ficava apenas nas palavras, ela era católica na ação, ela realmente praticava em sua vida a sua religião, as coisas em que acreditava. Ela visitava presos na prisão, ajuntava revistas para levar para os presos, mobilizava minhas tias para fazer enxoval para as presas grávidas ou mães pobres. Quando mendigos batiam na sua porta, se não tivesse comida pronta, ela ia fritar um ovo, esquentar um arroz e um feijão. Se ela via algum bêbado caído na rua, tratava de arranjar um café forte, comida e dar um jeito no pobre coitado. Se fosse um mendigo doente, chamava ambulância e acompanhava ao hospital. Esses são apenas alguns poucos exemplos do que ela fazia. Ela de fato levava a sério o amor ao próximo.

Com a maturidade, fui descrendo de Deus, acho que é uma abstração bonita, mas não consigo acreditar mais, não vejo lógica. Sei que tentar acreditar em Deus pela nossa lógica, humana, é perda de tempo, porque um Deus de bondade e misericórdia nos deixaria aqui na terra penando? Prá mim isso é coisa de sádico. Se Ele existe, obedece uma lógica d’Ele e não estou interessada em ficar tentando entendê-la. Acho mais importante tentar viver a vida da melhor maneira que eu posso, se Ele existir, ele está vendo tudo mesmo e se Ele é de fato bom, ele vai ter misericórdia de mim. Não acredito em inferno mesmo, não é da morte que tenho mais medo, sei que há coisas bem piores na vida do que ela. E é aí que eu chego ao meu ponto.

Viver a vida da melhor maneira que eu posso para mim, significa viver de acordo com os valores que aprendi no cristianismo e defendê-los. Outros valores vieram e foram aprendidos, mas a base de tudo, veio da minha formação Cristã. Os valores que acredito são basicamente os valores de Jesus. Não violência, amor ao próximo, respeito à vida, perdão, compaixão, paz. Não estou aqui dizendo com isso que sou um exemplo e que consigo viver esses valores. Estou longe disso, muito longe mesmo. Perdão é o valor mais difícil de praticar. Sou muito imperfeita, cheia de defeitos, não chego aos peś de minha avó. O meu modo é brigando, discórdia, aos montes em minha vida. Estou há dois anos sem falar com a pessoa, que foi por muito tempo, minha melhor amiga e estou longe de perdoá-la e estou longe de sequer pensar em querer o pedão dela. Porque, sim, eu pequei, sim, eu errei, mas a minha mágoa é grande e eu sou pequena, sou fraca. Mas vou tentando, dentro de minhas limitações, vou tentando.

Porém nunca deixo de defender esses valores. Não acredito em Deus, não vou à Igreja, não rezo, não louvo e não alardeio minha fé pelos Facebooks, não desejo que Deus lhe acompanhe e nem que lhe proteja, não agradeço nada a Ele. Mas quando eu vejo injustiça, não me calo. Quando eu vejo violência bruta, me revolto. Me sinto impotente perante a miséria. Não julgo mendigos, vagabundos, putas, drogados, loucos, bichas, travestis, pretos, índios, pobres, maconheiros, bandidos, marginais, mulheres que fizeram aborto, estudantes. Repudio a pena de morte. Kadafi foi um monstro? Foi também, não tenho conta das barbaridades que ele cometeu, mas quando ele foi agredido, brutalizado, perseguido e assassinado sem julgamento, naquele momento ele foi Jesus também. Sempre vou estar do lado de quem está oprimido, seja lá qual for a razão. Aprendi que Jesus está neles, e não, não acredito que Jesus era Deus, mas acredito que ele era um homem igual à mim e é por isso que eu devo respeitá-lo onde ele estiver. Porque é respeitando a Ele, que respeito a mim mesma, à minha vida e à humanidade. Somos iguais e não nos cabe julgar quem merece viver e quem merece morrer, muito menos de que forma. A vida nunca foi questão de merecimento. Acredito que a compaixão é o único meio da gente se redimir. É tendo compaixão desses excluídos que eu posso aceitar a minha própria fraqueza e imperfeição.

Os cínicos dizem que minha vó era uma ingênua. Eu acho que minha avó era a pessoa mais forte e corajosa que já conheci. Ter bondade é ter coragem. Fácil é dizer e espalhar idiotices que no fundo, nem você mesmo teria estômago para fazer. Duvido que muitos, que defendem a pena de morte, seriam capazes de executá-la, por exemplo. Deixam essa tarefa para outras “escórias”.

E você? De que lado está?

4 comentários em “De que lado você está?

  1. Olá tudo bem! Feliz 2013
    Chamou-me a atenção a tua fala referente ao padre Ceppi.
    Eu o conheci também no período de Mogi das Cruzes.
    Hoje decidi saber algo sobre ele e acabei achando seu comentario que chamou-me a atenção teu depoimento ainda infantil.
    Também a missão de sua avó com os menos favorecidos… Uma missionaria que mostra a forma simples de se chegar ao pai…fora da caridade não há salvação…
    Caso queira trocar algum email fique a disposição,
    Grande abraço,
    Profa. Sueli

  2. Nossa estou surpreso com esse texto, sou navegante de primeira viagem aqui no seu blog, vim parar aqui pela comunidade brasileira de WordPress, já tinha visto um comentário muito pertinente seu sobre o jornalista assassinado, depois vi que você foi uma das poucas pessoas sortudas a viajar para o EUA no encontro sobre questões estratégicas do sistema e agora vejo um texto que nada tem a ver com o universo técnico.

    Você escreve muito bem, sua avó foi um exemplo para você e “por tabela” acabou me inspirando também a tentar ser alguém melhor, eu tenho uma avó parecida com a sua, menos ativa um pouco mas muito religiosa também. Acho que no fim, aqui filosofando sozinho, eu e você temos algo em comum, mais facilidade para fazer o bem para desconhecidos do que para quem está perto de nós.

    Um abraço vou continuar lendo seu blog de “frente para trás”, esse é só o primeiro texto.

  3. Minha postura religiosa é diferente da sua (sou do tipo que reza, etc), mas apoio seu modo de encarar a sua relação com as pessoas e com o mundo. Acho que mais vale um ateu gente boa que um religioso que só cumpre com os rituais de sua crença e nada mais…

  4. Oi Cátia,

    Bonito o seu modo de pensar e o modo de agir de sua vozinha.

    O que estamos vivendo (ao menos em nosso país), no entanto, é excesso de “Direitos” sem a necessidade da contrapartida dos “Deveres”. E isso acaba afastando pessoas “de bem” que poderiam ajudar, melhorar a condição de vida dos menos afortunados. Pense bem: você daria carona para alguém hoje em dia?

    Parabéns pelo texto e por você ser assim.

    Um abraço,

    Dalton

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