Se esta rua fosse minha…

Verão a todo vapor, literalmente. Uma chuva ameaçou cair. Som abafado de trovões e raios piscando aqui e ali no horizonte, mas nada da danada vir refrescar, ao invés, o ar parado e viscoso. Vez em quando sopra um ventinho fresco que deixa um gostinho de quero mais e traz um cheiro bom de mato e terra molhada. Vozes de crianças brincando na rua. Eu também brinco com elas, brincamos de roda sob a luz fraca do poste na frente da casa rosa, janelas e portas verdes, com cortinas de xita. “Se esta rua, se esta rua fosse minha…” Meus tios planejam pescarias na varanda. Meu avô sentado em sua espreguiçadeira fuma um cigarro de palha. Na mesinha ao lado, queima uma espiral pra espantar os pernilongos sem sucesso. Lá dentro uma tia tira a mesa do café da tarde enquanto as outras continuam conversando. Um choro de bebê que não dorme por causa do calor. A vó chega na porta de vidro da sala, com uma mão na cintura e a outra abanando um leque de palha. Ouço vir da garagem o som de risadas dos meus primos. Do som do carro do tio Caetano ouço os afro-sambas de Toquinho e Vinícius. Meus primos menores brincam de pega-pega no corredor externo. Eu, minha irmã e minha prima brincamos dentro da combi verde do vô. Na sala alguém tenta reconhecer as pessoas numa foto em branco-e-preto da família, tirada em outra temporada na Maranduba. Alguém escolhe um livro da prateleira. O caso dos dez negrinhos, Os elefantes não esquecem, O mameluco, Seleções de Readers Digest. Observo uma gravura que mostra dois homens a cavalo vendo as Cataratas do Iguaçu. Dona Odete, Seu Manoel e Adriana, todos de banho tomado aparecem na varanda pra um dedinho de prosa. Bate um cheiro de goiaba. Um morcego dá um razante. Vez em quando bate a luz de um farol de carro lá na pista. Alguém me mostra a estrela D’alva no céu estrelado. As cigarras cantam sem parar. Um vaga-lume diverte a criançada. O cri-cri dos grilos parecem ditar o ritmo do piscar das estrelas no céu. A lagartixa no cantinho da parede sorrateira come um pernilongo. Cheiro de dama-da-noite. “Se esta rua, se esta rua fosse minha”, eu mandava ela voltar no tempo.

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