São 22h44. É a segunda vez que me levanto da cama para acalmar minha mãe que se levantou achando que era hora de tomar banho. Coloquei ela de volta na cama, dei um pouco de água e passei um gel calmante nas bochechas queimadas de frio. O papai acorda e finge que está dormindo.

Me sinto velha. Velha e feia. E cansada.

Fui ao parque de tarde, fui andando sozinha. Estava frio. Os macaquinhos apareceram atrás de comida. Uma gracinha. Me sentei no meu lugar preferido e fiquei descansando e observando a paisagem. Um casal sentou na grama, e ficaram namorando. Fotografei os dois na contra-luz, com o lago e as árvores. Ficou bonito. Queria ser eu ali. Coloquei O milagre dos peixes do Milton Nascimento e fiquei ali um tempo. Foi bom, bonito, muita paz. O sol estava quente e o vento gelado. Quando me dei conta já era hora de voltar.

Levantei e vim embora. No caminho comprei uma água de côco. Parei pra fotografar o Tietê, triste e já fedido. Mas ainda bonito. O rio onde meu pai nadou quando era criança, onde ele caçava rã com os amiguinhos. Onde ele foi picado por uma cobra quando caçava passarinho com os mesmos amiguinhos. Hideo e Tadao. Tadao correu buscar um peruzinho, colocou meu pai sentado e foi empurrando até a farmácia Sta Terezinha. Minha batchan ficou desesperada. Conseguiram o antídoto, mas era preciso esperar pra saber se funcionou. Que agonia! Imagino meu pai com aquela carinha da foto num cavalinho de pau. Uma carinha meio aflita, meio tímida. Imagino que era o xodó da mamãe. O mais novinho dos irmãos.

A batchan fazia malabarismo com seis laranjas e o irmão mais velho Satio queria aprender, mas derrubava as laranjas. A batchan ria. Tocava gaita também essa vó japonesa que eu não conheci. Dela minha mãe contava que se sentou justo em cima da almofada que colocaram pra disfarçar o buraco no sofá e lá ficou entalada no dia do noivado. Também tinha um sotaque forte: “Sumio é um farra!”

Boa cozinheira, amigos do papai sempre apareciam para filar um rango. Um deles ganhou o apelido de Zé Lanchinho.

Dona Rosa Kinko Kitahara, ou Kitahara Kinko, Tomita nome de solteira. Veio com a família do Japão. Levava meu pai para visitar a mãe no bairro da Liberdade em São Paulo. Meu pai ficava impressionado com as mãos transparentes da sua batchan, tão velhinha que dava pra ver as veias.

Essas lembranças meu pai me conta com uma inocência de criança ainda. São lembranças que ele guarda na memória e gosta de repetir. Como no dia em que foi atender ao telefone numa mercearia porque não tinham telefone em casa. Ele nunca tinha falado em um telefone antes e o dono da mercearia gritou com ele porque tinha medo de falar. A batchan o consolou.

Também me conta que ia buscar a mãe e a amiga, mãe da Wanda Takahashi, no cinema. Toda quarta ou quinta-feira o Cine Avenida tinha sessões de filmes japoneses e a colônia comparecia em massa. Levavam lanche de pão com mortadela e passavam o dia no cinema. Como só voltavam à noite, meu pai ia buscá-las, a pé mesmo.

Gosta de contar do cachorro do ditchan, cachorro da raça colie (ele pronuncia com o ‘o’ fechado), tão inteligente que ia buscar carne no açougue do mercadão (mercado municipal) e trazia embrulhada na boca, sem cair na tentação de comê-la.

Levanto de novo, mamãe está falando alto. Aproveito pra cobrir o papai que está acordado e me pergunta sobre seus ternos. Onde eu os coloquei? Estão lá no quarto, pai, já falei pro senhor. Tá, quando eu morrer quero que coloque tudo no caixão comigo. Quero que coloque o terno em mim, que nem o Satio. Estava de terno, é velho, mas tem que ser de terno. Credo pai! Que coisa!! Dou risada e cubro ele dizendo que não vai morrer nada.

Volto pra cama e choro. A mamãe ainda continua falando alto. Parece que está falando no telefone, combinando alguma coisa com alguém. Adormeço e durmo profundamente até acordar sobressaltada. Será que estão bem?? Entro no quarto, mamãe ronca de boca aberta igual a vó Geralda. Papai dorme de lado. Tudo em paz. Volto pra cama.

Um comentário em “

  1. Que delicia de texto, Cátia! Parecia que estava com você no parque. Amei. E que cenas nostálgicas, tão belas.
    Obrigada.
    Beijo, menina

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