Sinto minha pele quente do sol, é um ardido gostoso, necessário para lembrar que tenho pele. E embaixo da pele ossos, ossos que me contam meu passado, esse osso do meu ombro herdei do meu pai e esse do meu peito, de minha avó. E me pego viajando no espaço e no tempo, sendo mil pessoas em uma só. Cada célula do meu corpo guarda memórias de outros corpos, outras almas, meu corpo guarda lembranças do Japão, da África, de Portugal, de onde mais? Por onde meu corpo esteve? Dizem que até judeu já foi. E pode ser que foi índio também. Índio selvagem, correndo com meus pés nas matas, mergulhando nos rios, nos mares, livre, meu pé já foi livre. E minhas mãos e meus dedos, talvez já tocaram muito piano e por isso tamborilam frustrados. Ou desenharam muitos kanjis? E os meus olhos? O que já viram? Que lágrimas derramaram? E meu coração, já bateu por quem e já parou quantas vezes? E a minha voz? Já ecoou em quais amplidões ou morreu em quais paredes? E meu cérebro? Que pensamentos já produziu? E as ínfimas partículas, pó de que estrela? Em qual constelação? Meu corpo, minha pele, meus ossos, eu mesma mistério…
Categoria: Contos
gotas de ficção
Bicho esquisito
Um lugar sem ninguém me olhando, vamos, depressa! Deve ter algum canto nesse parque maldito! Vão trabalhar, o que vocês estão aqui, correndo? malhando? não adianta, vão tudo morrer mesmo, me deixem em paz, me dêem um pouco de privacidade, caramba. Logo, logo, depressa, não vou aguentar, não vou aguentar mais, não dá. O gosto salgado de lágrimas na boca, o olho embaçando, os olhos míopes embaçados e lágrimas, não dá prá ver mais nada, só o vulto das pessoas correndo. Um sabiá cantou, que lindo, meu bem, mas agora não dá, não dá. Só preciso um cantinho prá mim, é pedir muito? Cidade dos infernos. Tropeçou numa? pedra? Não sei, mas com o tropeço foi parando e sentando na ponta de um banco, aqui, pronto, aqui posso chorar à vontade. Quando finalmente começa a chorar e soltar aquele bolo preso no peito, na garganta, ouve a voz do personal trainer: “Isso, mas encaixa mais o quadril e vai baixando o tronco devagar”. Mas será possível? Cidade dos infernos. Abaixa a cabeça entre as pernas e a envolve com os braços, tentando disfarçar, e chora mesmo assim, dane-se se estão olhando. Chora baixinho, só soluça, só sente o corpo convulsionando, sem emitir som, sem chamar muito a atenção. Isso, deixa sair, aliviar o peito. Chora sem pensar muito, sem pensar no porquê, se não vai doer mais ainda. Quanto tempo ficou assim, não sabe. As palavras ditas durante a discussão se misturaram à voz do personal trainer, dando as instruções calmamente para seu aluno. Começou a prestar atenção aos dois, sem olhar para eles, olhando para baixo, vendo as próprias lágrimas caindo no chão, na terra, fazendo um barro. Ouvindo o barulho das lágrimas batendo na terra com um pequeno som abafado, inaudível, uma lágrima caiu bem em cima de uma formiga. Mas porque mesmo estava chorando? Porque discutiram? O que machucou tanto assim? O que foi dito? Não sei, mais, ai que vergonha. De repente se viu gritando e dizendo coisas meio desconexas, com raiva. Um dos colegas a encarou assustado de sua mesa, o que está acontecendo? E mesmo gritando, em sua mente, ela mesma respondeu: “não sei!”, como se não fosse ela mesma quem estivesse ali naquele momento gritando e brigando. Quando a discussão terminou, e cada um voltou para seu lugar, ela ainda bufava, bufava como um boi, e tremia de nervoso. Vou explodir, é melhor eu sair daqui, rápido. Pegou as chaves, dinheiro e desceu as escadas pisando duro, rapidamente e caminhou em direção ao parque, onde achava que teria privacidade para respirar até passar aquela coisa. Continuar lendo “Bicho esquisito”