Ricardo Vilela, 488

Eu lembro da rua e lembro da casa. Lembro que um dos primeiros caminhos a pé que aprendi a fazer sozinha era esse: sair de casa na rua Casarejos, no Mogilar e caminhar até pertinho da casa da Ana Clara, lá tinha uma passagem pra atravessar a linha do trem e dava na Manoel Caetano. A gente atravessava a linha correndo e num instantinho chegava na casa da vó. Se eu fechar os olhos, ainda ouço o rangido do portãozinho de ferro ao abrir, subo os degraus, e aperto a campainha, perto das colunas e da caixa de luz. Pééééééé. Tia Mi abre a porta, vestida numa daquelas batas compridas, me dá um pito porque apertei demais a campainha. O vô está sentado na espreguiçadeira, tomo a benção. Pela janela da sala entra um raio de sol onde vejo as partículas de pó brilharem. Entro correndo no quarto e a vó está sentada na máquina de costura, tomo a benção. Ela me diz que estou verde de fome, pra eu ir comer um pedaço de bolo lá na cozinha. O telefone preto toca, vou atender, aproveito pra pegar uns doces de leite no buffet, ah, o cheiro que batia quando abria aquela porta: um misto de mofo com chocolate em pó, sempre associo esse cheiro com coisa boa. “Catinha, vai molhar as plantinhas pra vovó!” “ah, vó!” fazia um muxoxo, mas lá ia eu molhar os mil e um vasos de plantas do corredor externo. Pegava a caneca de leite, com resto de nata. “Mistura com a água, que as plantinhas gostam.” Teorias da vó. Quando terminava a minha tarefa ia subir e descer as escadas dos quartos dos fundos, enquanto assistia o vô trabalhando na garagem. “Desce daí, menina, perigoso você cair”. Ia fuçar naquelas ferramentas do balcão. Olhava pra kombi verde, com esperanças que o vô deixasse eu entrar um pouquinho e brincar lá dentro. “Catinha, vem comer seu mingau, quer com chocolate?” Lá vinha a vó enxugando as mãos no avental na cintura, ajeitando os cabelinhos esvoaçando. Eu brincando entre as roupas de cama no varal, entre as varas de bambu. “Com chocolate”. A Cíntia gostava de tomar chá de hortelã daquela jardineira que ficava no canto. Gostava de subir na tampa do poço do quintal. “É verdade que tem água ali dentro?” “Vamos brincar de esconde-esconde no quarto dos fundos?” E a vida era assim…

Delícia de experimentador

Como é que vou dizer o que eu sinto? Sou um emaranhado de sentimentos e emoções à flor-da-pele ebulindo a qualquer palavra olhar evento acontecimento. eu sinto sinto sinto sinto, quem me dera não sentir mais nada nada, viver é dor, everybody hurts, sometimes, mas parece que eu dôo o tempo todo, muitas vezes sentir é bom, mas outras era melhor parar por aqui. Daqui por diante nada, branco, nulo, decretado o gelo, a era do gelo, da indiferença. Ah, indiferença, a indiferença dói, fere na alma, fere fundo, fere agudo, fere com ponta, com várias pontas. Eu preciso que você me desaponte muito muito muito muito, por favor faça algo muito ruim imperdoável prá eu poder me livrar de você, da idéia de você, da ilusão de você, pise na bola, vai, você consegue, eu sei que sim, mais cedo mais tarde você vai pisar, você já está quase lá, pise só um pouquinho, não precisa muito, me desiluda, me decepcione, me decepcione, na verdade não é você, sou eu, eu eu eu eu eu eu, eu é mais forte que eu, deve ser químico, isso, só pode ser, talvez uma droga resolvesse, qualquer química, qualquer, mas eu sou careta, eu sou sóbria, eu sou raçuda, pingo sal em ferida, escovo queimadura. Mas eu te rogo essa praga: sinta!

Ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor
só doer
não é dor
delícia
de experimentador
Leminski

Que tudo passe

Tempo de chuva, tempo de perda – amizades que se foram pelo ralo da indiferença, levando junto sonhos, lembranças e certezas. E cada um segue seu caminho, e eu sigo o meu mais dura, mais sozinha, mas também mais independente, mais forte, mais eu mesma. Nesse mundo somos eu e eu mesma. E tudo passa e tudo passará. Que passe logo e passe muito bem!

Que tudo passe
passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
passe a paz

passe o que nasce
passe o que vem
passe o que faz
passe o que faz-se
que tudo passe
e passe muito bem.

Paulo Leminski

São Paulo

Antes de mais nada, escrevo este post depois de passar quase 3 horas no trânsito de marginal+Airton Senna em véspera de feriado, sendo hostilizada por motoboys malditos, caminhões monstruosos e motoristas sem mãe.

Eu juro que tentei, eu juro! Mas tá difícil, São Paulo. Eu passei um mês sem dizer que te odeio, que odeio seu trânsito, que odeio sua sujeira, que odeio ver a tua pobreza crua, que odeio o cheiro de fumaça, que odeio seus motoboys, sua pressa, seu stress, sua solidão, seu cinza, suas putas e michês, seus mendigos dormindo nas calçadas, cantos, esquinas, pontes, viadutos, escadas, portas, beirais, soleiras, seus loucos, suas buzinas, o ronco de seus motores, seus carros correndo, suas caras fechadas, seus maus humores, seus silêncios, suas indiferenças, seu papo sobre trabalho, trabalho trabalho trabalho, seus cobradores entediados, seus motoristas de ônibus impacientes, seus corredores de ônibus, seus ônibus e metrô lotados, seus shoppings fúteis, seus modernos pescoçudos, seus óculos retrôs, suas baladas viradas, seus tênis adidas, seus executivos em carrões, suas mulheres de óculos escuros em SUVs sempre avançando nas faixas de pedestres, lixo por todos os lados, fachadas sujas, poeira preta, pichações, odeio tudo isso e tudo mais que me oprime e que é o avesso, não do avesso, mas o avesso do que eu sou e do que eu quero ser e viver.

Agora me pergunto: porque achei que conseguiria conviver com isso?

Ano novo – sou mortal

Começando um ano novo novamente. Desta vez iniciando com mudanças, mudanças não tanto ansiadas quanto necessárias. Necessárias… Sempre me coloquei como espectadora de mim mesma, mas preciso protagonizar, tomar as rédeas, agarrar a vida pelas aspas, como um touro, como dizia o personagem Toríbio de Érico Veríssimo. Essa síndrome de boa moça tem que acabar, o que eu mais quero é perder o juízo, mas sem perder a razão. Sou mortal.

A vida tem me levado, e o ritmo tem sido lento, mas com solavancos, talvez como um carro de boi, devagar, sempre, e socando, socando. Sou mortal.

Sou mortal, sou mortal, sou mortal.

Porque sou a favor da legalização do aborto

Hoje descobri que o dia do meu aniversário, dia 28 de maio é também o Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher. Haverá o Ato em defesa das vidas das mulheres: Contra a CPI do Aborto! na praça João Mendes, Centro de São Paulo capital, às 14h. Por este motivo, acho que seria uma boa oportunidade para explicar porque sou a favor da legalização do aborto. Continuar lendo “Porque sou a favor da legalização do aborto”

Recordações de outros Natais

O Natal prá gente era o ápice da nossa vidinha infantil. Mas prá gente ele começava antes, já no final de outubro. Minha avó organizava uma encenação do presépio, com a netaiada e criançadas dos “agregados” da família. Os ensaios começavam bem antes, na catedral de Sant’Anna. Os netos mais velhos representavam os personagens mais importantes: José, Maria, os arcanjos Gabriel, do sonho de José e dos pastores de Belém, a Estrela-Guia, Isabel, a prima de Maria e mãe do João Batista, os três reis magos. Os menores eram relegados aos papéis menos importantes: pastores, anjinhos, bichinhos (sim, a vaca, o boizinho e o burrinho eram representados por crianças com máscaras). Com o tempo, minha vó foi ficando velhinha e a tarefa foi assumida pela minha mãe que acrescentou algumas cenas, como a do soldado romano lendo o edital sobre o rescenceamento, a do casal José e Maria procurando uma estalagem em Belém, e a do tirano Herodes consultando os doutores da lei e ordenando a matança dos inocentes. Continuar lendo “Recordações de outros Natais”

Compreender a vida é uma tarefa inútil, aceitar a morte é uma tarefa quase impossível, mas mais dia menos dia, tudo passa e tudo passará. Dia difícil, de perda, de reflexão. Pensando que amar é quase sobrehumano, como diz a música. Mas é preciso. É preciso parar de buscar em outro lugar o que a gente tem aqui mesmo e aceitar o que a gente tem.

Eu me canso de mim mesma, muito mesmo, mas não posso desistir. Acho que não mereço muita coisa, e ao mesmo tempo acho que eu mereço muito, muito mais. Mas eu sou um leão, eu sou forte, eu choro alto, eu soluço, mas eu continuo. Às vezes, acho que sou como um cavalo enlouquecido, desgovernado e o cavaleiro perdeu as rédeas. Não consigo me controlar e quando eu vejo fui eu mesma, eu novamente, sempre eu. Mas a verdade é que eu sou eu e não me vejo sendo outra, por mais doloroso que isso seja, prá mim e pros outros.

Mas eu tenho estofo, eu tenho dentro de mim, uma pessoa que mesmo tremendo desesperadamente faz o que tem que ser feito, pro bem e pro mal. Isso eu sei de mim. E tem muita gente que na hora salta de lado. Eu sei que assusto os outros, sou de dar medo, pois tenham medo mesmo seus covardes. Porque eu estou aqui inteira, de carne de osso, sou gente de verdade. Não sou uma fantasia, não tapo sol com peneira.

O que eu preciso é focalizar quem eu sou de verdade e buscar meu caminho, estou vivendo muito ao Deus dará, me deixando levar pela corrente, que está a meu favor, mas uma hora vira e eu fico sem nada.